terça-feira
PRÁTICAS PAGÃS NA IGREJA CATÓLICA
Ao longo de toda sua existência, a Igreja Católica veio assimilando cultos e práticas pagãos, alguns dos quais adquiriram papel fundamental no exercício da religião cristã. Pela observação sistemática de alguns destes cultos e práticas, comparando o significado que têm para os bruxos com o significado que têm para os cristãos, podemos compreender que, embora sigam caminhos diferentes, bruxos e cristãos, em essência, são muito mais parecidos do que ambos admitem.
A Metade Escura da Roda do Ano nas Comemorações Cristãs
Sabbaths são as principais celebrações comuns às mais diversas tradições bruxas, que se identificam a antigas celebrações pagãs. Os pequenos sabates ocorrem nos equinócios e solstícios e os grandes sabates têm datas fixas entre cada equinócio e solstício.
Os Sabbaths, sejam grandes ou pequenos, representam as fases pelas quais a natureza passa, sendo confundido pelos profanos com as estações do ano, apesar de estas serem apenas quatro e os sabates serem oito. Relacionam-se ao eterno girar da Roda do Ano, sucessão dosp rocessos de nascimento, concepção, frutificação e morte/hibernação da natureza.
O ano bruxo se inicia no frio e escuro meio do outono (1º de maio no hemisfério sul e 31 de outubro no hemisfério norte). Nesta data se celebra o Tempo dos Idos, conhecido pela tradição celta como Samhain. Na verdade, no dia deste sabate se considera que o ano acaba, mas por três dias o outro ainda não começa. E como se passa a estar fora do ano que se foi e o outro ainda não começou, trata-se de um período fora do tempo, onde vivos e mortos, bem como seres desprovidos de corpo físico, podem se encontrar.
Enquanto os bruxos celebram Samhain, com as crianças e os não iniciados esculpindo lanternas em abóboras para afugentar os espíritos que vagam livremente entre os vivos nesta época (noite do dia 31 de outubro a 2 de novembro), os cristãos estão celebrando o Dia de Todos os Santos (alterado de 13 de maio para 1º de novembro pelo Papa Gregório II, no século VIII) e o dia de finados (2 de novembro, conforme estabelecido pela Igreja em fins do século X). Tanto bruxos quanto cristãos dedicam este período a entrar em contato com entidades não encarnadas e lhes render homenagens.
O sabbath seguinte é a festa do inverno, Yule, pela tradição celta. Este é comemorado no solstício de inverno, menor dia do ano, mas, justamente por isso, é o momento de renascimento do Sol, ou seja, a partir da celebração de Yule os dias começarão a crescer.
Sempre lembrando que nos referimos às datas de sabbaths no hemisfério norte, pois as datas das comemorações cristãs foram estabelecidas acima da linha do equador, os cristãos celebrarão, nesta época, o natal.
No natal os cristãos celebram o nascimento de Jesus. Ainda criança, ele é a promessa de dias de glória. Enquanto isso, os bruxos, na festa do inverno, celebram o nascimento do Sol, como promessa de que o inverno que se inicia, tempo de dificuldades, será substituído pela primavera à medida que o Sol se tornar mais forte. Desta forma, tanto em um quanto em outro credo, se celebra o nascimento do Deus e a gradual substituição das trevas pela luz.
Os festejos de 2 de fevereiro têm o mesmo nome na Igreja e na Bruxaria Ibérica. Trata-se da festa de Candelárias, quando os católicos comemoram a apresentação de Jesus no Templo e os bruxos celebram a força da vida, a luz que já brilha no escuro, mas ainda não o ilumina, a vida que começa a forçar caminho sob a neve e que só é percebida por quem, a partir de sua sabedoria, vê além. Na passagem bíblica que remete à apresentação de Jesus no templo, o idoso Simeão pega Jesus no colo e diz: “Agora Senhor, deixa teu servo ir em paz, segundo a tua palavra, porque meus olhos viram a salvação que preparaste ante a face de todos os povos, luz que brilhará sobre todas as nações, e glória do teu povo, Israel”. (Lc 2, 29-33)
A semelhança de significado é inescapável: Jesus é pequeno demais para afastar o frio e a escuridão, mas naquele momento ele já se faz perceber como a luz do mundo.
Ambos, cristãos e bruxos, celebram Candelárias (Imbolg, na tradição celta) acendendo e portando velas, antiga prática pagã aconselhada por São Cirilo de Alexandria: “celebremos o mistério deste dia com lâmpadas flamejantes”, inspirado no próprio Testamento (“Vamos, irmãos! Vede o círio que hoje arde entre as mãos de Simeão! Vinde buscar nele a luz, vinde acender nele as vossas velas, quero dizer, as lâmpadas que o Senhor quer ver entre as vossas mãos” – Lc 12, 35).
O espírito dominante, em ambas as crenças, é o de crer na ou perceber a luz no fim do túnel, de renovar as esperanças em meio a tempos de dificuldade.
Os sinais que em Candelárias eram vistos apenas pelos sábios, se tornam visíveis a todos com o equinócio de primavera. A partir de então, os dias serão maiores que as noites, o que se tornará perceptível mais adiante, no próximo sabate. As neves se derretem, a alegria inocente paira no ar, propiciando o amor. Mais uma vez os nomes dos ritos pagãos e cristãos se confundem, os primeiros celebram Ostara (originalmente celebração à Deusa grega Ostera / germânica Esther), enquanto a Igreja celebra a Páscoa (Easter em inglês, Oster em alemão). Se restar dúvida acerca da identidade de significado entre a Páscoa e Ostara, pelo fato do Concílio de Nicéia ter estabelecido que a Páscoa deixaria de festejar a fuga dos judeus do Egito e passaria a comemorar a ressurreição de Jesus, os símbolos, idênticos em ambas as celebrações, deixam claro que na prática trata-se da evocação dos mesmos sentimentos de ressurgimento da vida após o fim do inverno. O ovo, símbolo da origem da vida, é aliado à lebre (coelho de páscoa, para os cristãos), símbolo da fertilidade. Curioso ainda notar que, mesmo após a destruição das culturas pré-colombianas, das quais restaram poucos traços, em tempos mais recentes foi reunido às comemorações de páscoa o uso do chocolate, alimento de origem olmeca, de uso ritualístico relacionado à fertilidade, e preparado com as sementes do cacaueiro (cacahuaquchtl, em maia), considerados presentes dos Deuses ao homem, e que, independente das crenças maias, apenas por serem sementes, já trazem o mesmo significado do ovo.
Ostara é o último sabbath da Metade Escura da Roda do Ano. Até aqui, contamos quatro sabbaths perfeitamente equivalentes, em espírito e significado, a comemorações cristãs.
Tempo dos Idos/Samhain – Todos os Santos e Finados
Festa do Inverno/Yule – Natal
Candelárias/Imbolg – Candelárias
Festa da Primavera/Ostara – Páscoa
Encerra-se o tempo do frio e escuridão e no sabate seguinte, Beltane, se inicia a Metade Clara da Roda do Ano, o tempo das luzes e do calor. No próximo segmento, abordaremos os quatro sabates pertencentes à Metade Clara.
A Metade Clara da Roda do Ano nas Comemorações Cristãs
Ao contrário da Metade Escura da Roda, nem todos os sabates da Metade Clara encontram correspondentes tão evidentes em eventos do calendário cristão. Sendo um tempo de plenitude, de gozar a vida e realizar, a Igreja, por preferir o celibato e a resignação, destilou mais os sabates da Metade Clara antes de incorporá-los modificados às comemorações cristãs. Os dois primeiros sabates da Metade Clara parecem estar combinados em um só período de festivais cristãos, e os dois demais, correspondem a práticas que, apesar de não terem sido oficializadas pela Igreja, foram muito bem recebidas em seu seio.
Em 1º de maio, no hemisfério norte, se comemora Beltane. À noite, as bruxas medievais dançavam ao redor de uma fogueira, celebrando o triunfo do dia sobre a noite. O Sol aquece os sentimentos suaves da primavera e os campos começam a ser fertilizados por seu calor. O frio do inverno se tornou apenas uma lembrança e, para se colocar em fase com o momento, absorver as energias da natureza e contribuir com a fertilidade do solo, oferecendo-lhe sua própria energia, casais faziam amor nos campos, à luz da Lua, o que levou Beltane a ser um dos sabates mais odiados pela Igreja.
Quando chega o solstício de verão, comemora-se a plenitude do Sol no sabate Litha, pela tradição celta, que nós, da bruxaria ancestral chamamos de Festa do Sol. Colhem-se ervas e a terra oferece suas primeiras colheitas. Tudo é enfeitado com flores e o calor evoca os prazeres mais diversos: gastronômicos, estéticos, olfativos, auditivos, sensuais e outros. Ao mesmo tempo que o sono começa a afetar, é a época de realizar, de aproveitar a energia do Sol que é despejada sobre os bruxos.
À primeira vista, não se percebe o quanto dois sabates tão malquistos pela Igreja foram assimilados por ela, mas os elementos em comum são tão evidentes que não há como contestar o fato. Ao longo do mês de junho e julho ocorrem as Festas Juninas, homenageando-se São João e Santo Antônio. Acende-se uma fogueira, como a de Beltane, dança-se ao redor dela, como em Beltane, se celebra o “casamento na roça” em honra a Santo Antônio, assim como os bruxos realizam a união carnal em espaços abertos em Beltane, as danças de São João são de mãos dadas, assim como também o é a dança das bruxas ao redor da fogueira, muitas das comidas típicas das festas juninas são à base de farinha de milho, além do próprio milho cozido, sendo este um alimento tido como solar por todas as tradições esotéricas. Não podemos deixar de notar, ainda, que a Semana Santa se comemora também neste período (entre maio e junho), e assim como o Natal representa o nascimento de Jesus e a Semana Santa comemora sua plenitude e crucificação, a Festa do Inverno comemora o nascimento do Sol e a Festa do Sol sua plenitude e queda.
Dentro da Semana Santa, Corpus Christi representa sua presença entre nós na eucaristia. A Festa do Sol não fala da hóstia, mas partilha o pão como manifestação do Deus na Terra.
Onde a Igreja silenciou, permaneceram nas tradições locais, aparentemente desvinculadas de significado religioso, práticas como a de pular a fogueira. Para os pagãos, o significado é muito claro: pula-se a fogueira para se purificar e para afastar de si todo o mal que esteja no encalço.
Restaram, também na tradição popular, algumas variedades da dança das fitas que compõe o cerne das comemorações diurnas de Beltane, com a participação de crianças ou de jovens. Eleva-se um mastro, chamado pelos pagãos de mastro de maio, que simboliza o falo do próprio Deus. Em seu topo são amarradas fitas coloridas cujas pontas são seguradas por jovens ou crianças e que, à medida que evolui a dança ao redor do mastro, se cruzam e se descruzam, acabando por formar uma trama que envolve e aperta o mastro, simbolizando o órgão sexual da Deusa abraçando o falo divino. Apesar de toda a dificuldade da Igreja em assimilar ritos de fertilidade como estes, os rituais foram quase integralmente preservados, apenas caindo no esquecimento seu significado original pagão.
Assim como a Festa do Sol é o ponto de poder máximo do Sol, é também a partir deste dia que suas forças começam a declinar. Isto só passa a ser notado no sabate seguinte, Festa da Cornucópia (Lammas, na tradição celta), que se realiza em 1º de agosto no hemisfério norte.
Por outro lado, a Festa da Cornucópia e a Festa das Graças (equinócio de outono) são marcadas pela abundância de alimentos provenientes das respectivas safras. Embora não exista um festival cristão que corresponda a tais sabates, existe uma comemoração relativamente recente que caiu nas boas graças da Igreja onde os sentimentos evocados são exatamente os mesmos dos destes dois sabates, em especial a Festa das Graças. Nos referimos ao Dia de Ação de Graças, ocasião em que, diante de uma mesa farta, agradecemos a fartura e partilhamos, em família, os alimentos, considerando-os como dádivas divinas.
Apesar de a abundância ser maior na Festa da Cornucópia, o aspecto da partilha é mais marcado na Festa das Graças, que é comemorada no equinócio de outono. Todavia, como, a partir do equinócio, os dias se tornam menores que as noites, acrescenta-se neste sabate uma preocupação com os dias futuros. Os bruxos colhem o que o Sol e a terra lhes propiciou, mas já começam a se preparar para períodos de dificuldade. Aqui, assim como ocorre nas festas cristãs de Cosme e Damião, quem tem reservas oferece alimentos aos menos abastados.
A Festa das Graças é o último sabate da Roda do Ano. Até que chegue o Tempo dos Idos, colhem-se os frutos já pensando na vinda dos tempos difíceis. Um novo ciclo de plenitude e queda se cumpre para bruxos e cristãos, contando os quatro festivais pagãos da metade clara e diversas comemorações cristãs que abordam diferentes aspectos dos mesmos sentimentos evocados pelos bruxos.
Beltane – Festas Juninas
Festa do Sol – Semana Santa
Festa da Cornucópia - Ação de Graças
Festa das Graças – Ação de Graças e S. Cosme e S. Damião
Mas os pontos em comum entre as práticas pagãs e as práticas cristãs vão muito além dos festivais.
No próximo segmento, apontaremos exemplos de como os cristãos, incluindo sacerdotes, realizam, sob as bênçãos da Igreja, práticas como a magia, que o senso comum, erroneamente, atribui exclusivamente a pagãos e, em especial, a bruxos.
Além dos Festivais
Ao compararmos os sabates com os festivais católicos, podemos observar o quão similares são a Roda do Ano para a bruxaria e o ciclo anual para o catolicismo, mas, apesar de haver uma diferença fundamental e decisiva entre os sistemas monoteísta e politeísta, as similaridades entre uma e outra opção religiosa vão muito além dos festivais, atingindo desde algumas práticas características e oficiais de cada forma de religiosidade até algumas rotinas de cunho mais pessoal e, ocasionalmente, não autorizadas oficialmente pela autoridade religiosa formal.
É recorrente, entre várias vertentes da bruxaria, em especial os grupos wiccanos, a celebração do pão e do vinho em forma escandalosamente similar à consagração do pão e do vinho católica , mas isto é óbvio demais para merecer nossa atenção. Em lugar disto, consideremos, por exemplo, os sacramentos do catolicismo: o batismo (ingresso na religião sem participação ativa); a eucaristia (início da participação comunitária na religião); a crisma ou confirmação (início de participação ativa no exercício da religião); a ordenação (assunção de função sacerdotal); a penitência (perdão divino); o casamento (compromisso entre os membros de um casal); a unção aos enfermos (cura).
Em lugar do batismo, há um ritual bruxo de apresentação à Lua; ao invés da eucaristia, a iniciação (primeiro grau – alcoviteiro/a) permite que se participe de rituais com outros membros do grupo; semelhante à crisma é a elevação ao segundo grau entre os bruxos (grau de feiticeiro/a), quando o bruxo começa a aprender e a exercitar diversas práticas bruxas; a ordenação é o mais claro equivalente à elevação ao terceiro e último grau da bruxaria, quando o bruxo passa a ser chamado de bruxo em senso estrito e se torna verdadeiramente um sacerdote.
Não há, entre os bruxos, o conceito de pecado a ser perdoado, mas assim como a penitência católica livra o pecador do mal do qual ele era portador, o aterramento retira do bruxo (senso amplo) o excesso de energia e as energias desarmônicas.
Por último, a unção aos enfermos encontra seu equivalente em diversos rituais de cura bruxos, com ou sem a aplicação de óleos ou ungüentos, curas que foram a tônica principal das antigas bruxas de aldeia típicas de diversas tradições européias, uma das quais deu origem à linhagem do autor.
Sacramento (catolicismo) - Ritual/Prática pagã (bruxaria) – No que consiste
Unção aos enfermos – Rituais diversos e específicos - Cura.
Casamento - Enlace de mãos – Compromisso de casal.
Penitência – Aterramento – Purificação.
Ordenação – Elevação ao 3º Grau – Início do sacerdócio.
Crisma/Confirmação - Elevação ao 2º Grau – Início da participação ativa.
Eucaristia – Iniciação - Início da participação comunitária.
Batismo - Apresentação à Lua – Ingresso na religião.
O que dizer, então, da bênção? Que diferença teria entre uma e outra religião? Que diferença teria entre as bênçãos das mais diversas religiões? A imposição das palmas com ou sem os dedos em posições específicas acompanhada da intenção/concentração no sentido de emanar algum tipo específico de energia em direção ao abençoado. Todas tão iguais…
A prece, cuja primeira estampa parece ter sido o ofício das antigas carpideiras egípcias, que acompanhavam o féretro com suas lamúrias em prol do falecido, se difere entre católicas e bruxas, será apenas nos deuses para os quais apelam e, em menor grau, nos gestos que empregam.
Por fim, um tanto à margem da Igreja nas últimas décadas mas muito populares até a primeira metade do século XX, as rezadeiras católicas são facilmente confundidas com as bruxas de aldeia acima mencionadas. Seus recursos eram encantamentos e feitiços dignos de iniciadas de segundo grau na bruxaria, desde rezas com facas para debelar verrugas até passes acompanhados de preces para retirar o mau olhado. O êxtase místico a que se submetiam as rezadeiras, embora pudessem usar métodos consideravelmente diferentes ou não dos das bruxas, tinham dois objetivos em comum: visões oraculares e/ou obtenção de bons conselhos.
Quem, com mais de trinta anos de idade, não teve na família, na geração de sua avó ou bisavó, uma boa cristã que freqüentava a missa com prazer e regularidade ao mesmo tempo que distribuía receitas de simpatia, as famosas mezinhas lusitanas, que hoje veiculam em revistas esotéricas de qualidade duvidosa?
Se tanto o leigo quanto o editor especializado tem dificuldades em vislumbrar as fronteiras entre as práticas da bruxaria e do catolicismo, só o ressentimento deve impedir as duas expressões de religiosidade de se aceitarem mutuamente…
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